
Felicidade eudaimónica
e a relação com o mindfulness
Segundo Aristóteles, a felicidade é uma finalidade (telos) maior e comum a todos os seres racionais.
Nessa conceção, todas as ações humanas ocorrem tendo em vista algum estágio de felicidade.
Pela prática do Mindfulness proporciona-se a expansão da consciência no momento presente,
orientando para a construção de uma felicidade eudaimónica.
A denominação é estranha, mas suporta um significado importantíssimo. Entende-se por felicidade eudaimónica a felicidade que é duradoura, relacionada com o que aprendemos ao longo da nossa vida. Não estremece facilmente e relaciona-se com a nossa educação, os nossos valores e personalidade. É ainda a responsável pelo nosso bem-estar psicológico, ajuda-nos a enfrentar desafios e a manter o nosso equilíbrio emocional.
Bem diferente da felicidade hedónica, isto é, da felicidade de curto prazo, como quando adquirimos um bem material ou outro que, apesar de nos proporcionar um estado de felicidade, este é momentâneo e, por vezes, esconde dores emocionais. O ideal será a procura por um equilíbrio entre ambas.
A felicidade, enquanto conceito empírico, encerra uma multiplicidade de significados e, por isso, o seu estudo nunca foi linear e consensual (Averill & More, 1993). A sua definição pode assumir diversas formas, desde o modo como avaliamos a vida como um todo e os seus aspetos significativos (Averill & More, 1993), até à felicidade alcançada pelo preenchimento de objetivos, desejos e necessidades importantes (Emmos, 2003), ou até mesmo a felicidade como resultado do equilíbrio entre o afeto positivo e o afeto nefativo (Keyes, Shmotkin & Ryff, 2002).
A psicologia positiva tem procurado investigar a felicidade sob duas abordagens distintas: a perspetiva hedónica e a perspetiva eudaimónica. Assim, hedonê, que significa prazer, provém do termo hedonismo. Esta é a corrente filosófica que defendia a “boa vida”, pela experiência de maximização do prazer e minimização da dor (Peterson, Park & Seligman, 2005; Ryan & Deci, 2001). A “boa vida”, segundo Aristóteles, é nada mais que a vida contemplativa.
Apesar da predominância inicial da corrente hedónica no estudo da felicidade, muitos filósofos discutiram a felicidade numa perspetiva eudaimónica. Para Aristóteles, filósofo grego, toda a atividade humana tem um fim e as pessoas procuram viver de acordo com o seu verdadeiro daimon ou verdadeiro self (Aristóteles, 1993), procurando ter uma vida com significado.
Assim, eudaimonia, enquanto estado subjetivo, envolve os sentimentos que ocorrem quando a pessoa se move em direção à autorrealização, para que possa desenvolver as suas potencialidades e conferir propósito à sua vida (Delle Fave, Wissing, Brdar, Vella-Broderick, & Freire, 2013; Waterman, Schwartz, & Conti, 2008).
O Mindfulness é a chave para a construção de uma felicidade eudaimónica
A prática do Mindfulness relaciona-se diretamente com a felicidade eudaimónica. Através da prática da atenção plena, o praticante desenvolve uma atitude contrária ao piloto automático, colocando-se numa posição desperta perante o que ocorre consigo e em torno de si.
Essa presença consciente permite a perceção das sensações do corpo, da respiração, das emoções e pensamento, que são aceites com ausência de julgamento. O praticante é conduzido a desenvolver uma atitude de reflexão, num papel de observador, desenvolvendo um equilíbrio emocional que permite pacificar as suas emoções e construir novos hábitos, mais conscientes.
A chave da atenção plena passa por estar atento e consciente em relação ao que acontece no momento presente, seja de forma intencional, isto é, praticando de forma consciente, ou aceitando-a, em vez de julgarmos o que percebemos e notamos.
Viver abertamente o que está presente permite-nos desenvolver uma maior consciência sobre aquilo que nos rodeia, utilizando os nossos sentidos (ouvindo, vendo, tocando, cheirando e saboreando), e o que nos acontece interiormente (os nossos pensamentos e sentimentos).
O alcance de estados permanentes de felicidade é obtido pelo facto de não sermos capturados pelo hábito de permanecer a pensar ou a preocupar sobre o que estamos a observar. Esta capacidade confere ainda um maior controlo sobre onde tomamos a decisão de colocar a nossa atenção.
Resultado dos diversos estudos já partilhados sobre os benefícios do Mindfulness para diferentes aspetos da nossa vida, incluem-se o bem-estar físico, a melhoria das relações pessoais, o maior desempenho quer nos estudos quer no trabalho, e mudanças estruturais no cérebro, que incluem o aumento de densidade do hipocampo, importante para o aprendizado e memória, para além de áreas associadas com autoconsciência, compaixão e introspeção.
Praticar Mindfulness é um cultivo natural ao nosso ser
A ausência de atenção plena é o mesmo que ir para um lugar que nos esquecemos onde fica, é conversar sem lembrar do diálogo, é comer sem sentir o gosto da comida, é não ser capaz de lembrar do trajeto de uma caminhada.
A ausência de atenção plena pode ser bastante prejudicial quer em termos de saúde, quer de felicidade. No entanto, somos seres de hábitos e trazer a atenção plena para todos os momentos, vivendo de forma desperta, é uma habilidade que se pode alcançar através da prática. Estar conectado no aqui e agora conduz-nos a experiências mais ricas.
Desenvolver uma atenção plena auxilia a lidar com a dor, ansiedade, reduzindo a pressão sanguínea (Huppert, F.A, 2005), beneficia o sistema imunológico e melhora certas condições de pele (Huppert, F.A; Shapiro, S. L e Mariannette, O. & Passmore, J., 2010) e proporciona maior longevidade (Alexander, C. N. et al). Pessoas que praticam frequentemente também registam alterações físicas nos seus cérebros, tais como menores sinais de stress, aprimoramento nas partes do cérebro associadas a emoções positivas (Davidson, R.J & Kabat-Zinn, J. et al), padrões de ativação em áreas ligadas a compaixão para com o outro e, aumento de densidade em áreas do cérebro associadas ao processamento sensorial (Huppert, F.A, 2005).
A atenção plena reflete-se, ainda, no desempenho, melhorando a memória e flexibilidade mental, a atenção e habilidade de concentração, a habilidade de aprender e desempenho escolar e, diversos aspetos ligados ao raciocínio criativo e criatividade (Huppert, F. A., Marianette, O & Passmore, J., 2010).
Alguns psicólogos propõem que a atenção plena leva ao bem-estar e a um florescimento porque promove uma melhor regulação do comportamento. Ela faz isso ao nos dar uma consciência mais completa sobre condições internas e externas, permitindo uma avaliação mais exata, escolhas mais conscientes (portanto, mais flexíveis) e reações menos automáticas e impulsivas (Brown, K.W., Ryan, R. M & Cresswell, J.M, 2007).
Assim, estar mais consciente de nossos pensamentos e sentimentos relacionados também está associado com a redução da ruminação, ansiedade e depressão, que leva a um aumento de resiliência e bem-estar psicológico (Shapiro, S.L, Marianette, O. & Passmore, J., Leary, M. R. & Tate, E. B).
Outros psicólogos mostraram que nossa habilidade de desfrutar de experiências positivas em nossa vida é um fator importante para a felicidade. Enquanto podemos rememorar com prazer experiências passadas ou antecipar as futuras, saborear o presente é o importante.
Um fator que é tóxico para nossos níveis de felicidade é a comparação social e desejar o que não temos. A propósito, num dos textos do Mestre budista, Lama Yeshe, na obra “Faça da sua mente um oceano: Aspetos da Psicologia Budista” (1999):
“Quando você era criança, você amava e desejava gelado, chocolate e bolo e pensava:
“quando eu crescer, eu vou ter todo o gelado, chocolate e bolo que eu quiser, e então vou ser feliz”.
Agora, você tem todo o gelado, chocolate e bolo que desejou, mas você está entediado.
Você decide que uma vez que tudo isso não o faz feliz, você vai ter um carro, uma casa, uma televisão,
um marido ou esposa e, em seguida, você será feliz.
Agora você tem tudo. Mas o seu carro é um problema, a sua casa é um problema,
o seu marido ou esposa são um problema, os seus filhos são um problema.
Aí você percebe que isso não traz satisfação.
O que é então a satisfação? Examine a sua vida desde a infância até ao presente momento
A sua mente mudou tantas vezes, mas você já chegou a uma conclusão do que realmente te faz feliz?”
O contentamento e felicidade são instintos naturais do ser humanos e, provavelmente, não existiu noutro momento histórico da humanidade, um período em que o que acreditamos que é a felicidade, estivesse tão disponível: viagens, produtos de todas as partes do mundo ao nosso dispor, tecnologia disponível para a maior parte da população e por aí adiante.
No entanto, provavelmente também nunca houve um tempo em que estivéssemos tao descontentes com a nossa realidade. Vivemos com a sensação de que falta algo, de que não somos bons o suficiente, de que precisamos de algo mais. A felicidade, como esse constante horizonte fugidio.
Aos poucos, com a prática da meditação Mindfulness, vamos percebendo que o nosso real contentamento não vem exatamente de conseguirmos satisfazer os nossos desejos, mas sim de conseguirmos cultivar a gratidão, de forma genuína, pelo que já está presente. Vem sim, da felicidade eudaimónica que nos dispomos a construir ao longo da vida e onde colocamos a nossa intenção, relacionada com a nossa verdadeira essência.
Catarina Arouca
Filósofa, Socióloga e Instrutora de Mindfulness.